terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Gato preto

Gato preto em meu caminho.
A silhueta curva e elegante se move,
va-ga-ro-sa-men-te
e mostra o peito branco enquanto se coça na quina mais próxima.
Olho brilha, corpo se encolhe
quando vê a mão chegando.
Mas basta o primeiro toque
e o gato preto se derrete

domingo, 13 de dezembro de 2009

Here comes the rain again

É, chove. Lá e cá.
E eu, nesta minha já costumeira falta de energia vital, nem saio da cama nem enfrento a água. Muito menos faço o que deveria: tentar tornar o lugar menos escancaradamente esperando uma invasão, alguém atrás dum corpo que abandonou a casa há muito tempo - porque de tudo, só falta o corpo. O abandono já está aqui, gritando em cada sapato fora do lugar, em cada canto vazio na geladeira, em cada peça de roupa que espera ir para o armário ou para uma sacola de caridade.
Nem de canetas convulsivas vive este espaço. Eu tento, mas elas caem, escorrem pelos dedos, recuam, escondem-se. O papel fica em branco. A tormenta está aqui dentro, mas não encontra a saída.
Antes da derrota definitiva, sobrou tempo para um último suspiro, ontem. Transcrevo:

Não sei falar.
Sinto-me pouco à vontade, sinto-me pouco eloquente, confusa, impertinente, inadequada. Pouco objetiva. Tomando o tempo alheio.
E se, há tempos atrás, a relação profissional terapeuta/paciente me parecia violenta, hoje em dia me parece mais dolorosa.
Porque o terapeuta está lá para servir de espelho, um rebatedor do som de nossa voz. Não é o terapeuta que opera, é nosso cérebro trabalhando o estímulo auditivo por ele mesmo fabricado. E o recorrer ao terapeuta é o atestado triste de que não temos rebatedores civis aos nossos queixumes.
Eu não tenho, mesmo.
Esse mundo é uma droga e obriga as pessoas a horários insanos, vidas estranhas, regras demais ou a ausência delas. E eu, de meu lado, deixei uma parte de mim em algum lugar sem chance de recuperação.
De momento, sinto-me cansada da ilusão. Do calor macio e fugaz das pequenas alegrias. Sinto-me doente da mais profunda solidão. Da falta total de compreensão de qualquer movimento, ou da falta disso. Sinto-me enganada.
Traída por falsas paixões, desenganada por encontros fortuitos, acabada por discursos cínicos, calada por porções infindáveis de comida: feio falar de boca cheia, sobra mais silência a se ocupar com besteirol, politicagem e sordidez.
Mas um dia ainda faço uma boa escolha. Parto pra

(e aqui a caneta falhou, caiu, rabiscou nada de útil, e caí numa mistura de choro cansado e sono abatendo)

sábado, 12 de dezembro de 2009

Sábado de sol

Teve? Não vi nada.
Depois de treze horas de desmaio ininterrupto, acordei com um calor do cão, fome, sede, uma tristeza fdp e meu nariz como se fosse sobrevivente da Guerra do Saco de Aspirador de Pó. E eu sem um antialérgico em casa.
Além disso, a casa em volta está quase querendo me expulsar por negligência. Só a tv ainda interfere em meu favor, alegando que todo dia eu olho pra ela um pouquinho. Senti-me culpada e fui conversar com a máquina de lavar, e estragar um pouco mais as unhas já descascadas na pia de louça suja.
De resto, continuo espirrando a cada dez segundos. É um indicador forte de que um segundo round vai bem, agora de barriguinha cheia com um pacote de bolachinhas de torta de limão e um copo de Nescau com leite em pó. Não me acordem se não for pra dizer que a humanidade acabou.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Refrão de bolero

E o problema é só esse, Ana, é que a gente sai do restaurante remoendo tudo que ouviu a tarde inteira, e o choro que engoliu entre águas e vinhos tintos, e tudo que a gente pensou sobre o que já passou, e a conclusão definitiva: ninguém dessas vinte pessoas na mesa tem a menor noção do que se passa nesse triste e único coração.
É só isso, Ana: a vida só se dá pra quem se deu. E quem se dá, mais hora menos hora se depara com a vida se dando, a vida nua, crua, dura, chata, definitiva, implacável. A vida só se dá pra quem toma porrada.
A vida só se dá, Ana, pra quem aguenta ouvir numa mesa sobre uma história, sobre mil anos de história, e sobre herdeiros dessa história onde a gente já deveria se encaixar. A vida só de dá pra quem engole vinho tinto ao invés de engolir as lágrimas salgadas por não ser reconhecido, e lembra que tudo que anda bem não chama a atenção, e leva a indiferença como elogio, e ainda assim espera caninamente o dia em que um "que bacana" há de aparecer.
Ana, a vida só se dá pra quem se dá entre acordes de piano, um quarto de cauda tocado depois de salmões cortados com maestria, depois de aspargos bem feitos, de sushis montados e picanhas a 81 reais. Eu achava que era isso, pelo menos. Achava que a vida era algo vivido, sentido. Como quem sente acordes de um quarto de cauda enquanto curte os últimos goles do tinto do dia.
Mas com eles vêm umas certezas sombrias, de que nada adianta enquanto não se tiver um anestésico forte, um analgésico forte, ou uma ignorância basilar que nos prenda na felicidade suprema de tomar um sorvete sob o sol de Copacabana como se fosse a última coisa a fazer na face da terra.
A vida só lembra que se dá pra quem percorre um aterro inteiro num táxi, engolindo lágrimas e chuva, enquanto tudo que vem à memória evanesce num piscar de olhos - enquanto tudo que há sobre o que se sente desaparece, como tudo que é tátil, palpável, súbtil. A vida só se dá pra quem não pensa, não enxerga, não sente. A vida se dá, mas não pra quem pensa enquanto matuta o que vai escrever ou como vai tentar explicar pra quem a quilômetros está. Quem pensa, já não reproduz. Quem ouve, já não sente, não sabe.
A vida só se dá pra quem se deu.
Mas essa ordinária nunca acha que a gente se dá o suficiente.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Heart of glass

Chegou, chegou! Mal posso esperar para ler "The heart is a lonely hunter".

***

Aí a criatura vem aqui e posta um comentário anônimo lamentando um post aí debaixo. Respondo: não tenha pena, filho. Se tá com pena, é porque não me conhece. Ou não entendeu nada.

***
E tô, mais uma vez, com vontade de reclamar pra fábrica que não pôs em mim nem um pinguinho de disposição política. Toda vez que preciso fazer um teatrinho desses é um suplício. Não nasci pra ser puxa-saco.
Mas verdade seja dita: gostei da minha árvore de natal nova.
Só meu estômago, cansado da luta que é fazer de conta que se diverte enquanto do lado de fora a vida não presta (parafraseando Leo Jaime), é que não curtiu muito o festerê. Empadinhas, pernil, brie, sanduichinhos... e uma mesa de doces que eu só mexi pra montar um prato lindo pra fotografar. Tudo isso de bobagem e eu chego em casa com fome. Ou será que era enjoo?

Evil warning

Carpinejar, meu ídolo, me explicando e me entendendo. Agora sei porque amo House e tenho essa cara de bebezinho até os quase trinta.

O Humor do Fodido

O mau humor é o melhor antídoto que existe. Nada como tomar o café da manhã com uma mulher irritada, ser passageiro de um motorista que vive reclamando do trânsito, conversar com um carrancudo que destila ódio para a classe política. São companhias estimulantes, afrodisíacas. Além de tudo, bem informadas. O pessimista é uma enciclopédia vendida de porta em porta. O otimista é que não lê jornal.
O otimista é frouxo, repete as mesmas frases evasivas e genéricas como “precisa acreditar” ou “tenha esperança”. O pessimista é pessoal, persuasivo, abrirá seus segredos com desembaraço. O otimista rende somente auto-ajuda. O pessimista proporciona alta literatura.
Guardo deslumbramento auditivo diante das pessoas que não respondem tudo bem no cumprimento. Enchem as vogais para declarar "tudo péssimo". Puxo a cadeira mais próxima e me sento com reverência porque percebo que descobri um corajoso no mundo, que vai se confessar com absoluta sinceridade, que tem vida própria e casa alugada.
O azedume é a inteligência em estado bruto. Aplaudo a loquacidade da tristeza. Desespero quando não fala é fatal. Desespero que esperneia é manso. Nunca fui de brigar, por exemplo, mas de espernear. Queria ser segurado pelos colegas antes de apanhar. Minha honra fez teatro na escola.
O mau humor do outro me deixa eufórico. Recebo uma sensação de paz que encontrei uma vez, ao soltar folhas de livro inédito no Rio Sena, apesar de não ter estado em Paris.
Do veneno alheio, surgirá sabedoria, ensinamento, conselhos. Quase uma aula de ecologia sentimental.
Orgulho-me desse humor muito brasileiro, incomparável. Daquele cara que deu tudo errado e ainda está achando graça. Sofreu enchente, deslizamento, seca, foi corneado e não se entrega. Não fechará o negócio, a cara, a amizade. É o que não tem motivos para rir e está rindo. Seu riso é perigoso. Seu riso é ofensivo. Seu riso é o caráter do pulmão.
Não confio em sujeito com felicidade de sobra. Será avarento e indiferente. Quem tem esconde. Unicamente peço dinheiro emprestado ao amigo que já faliu. É um pré-requisito que não costuma falhar.
Eu me interesso pela falta de explicação da alegria. Viva o humor do fodido. É o único que sobrevive às tragédias. Não ficará traumatizado, arrumará uma piada no acidente. Não ficará encastelado no quarto, pagará uma rodada ao pessoal do balcão.
A desgraça o torna generoso. Repentinamente natalino.
Meus grandes amigos estão cansados de recados, cada dia é um ultimato. Odeiam quando a atendente pergunta de onde são. Têm rancor por essa mania de rodoviária que atinge a maior parte das secretárias.
Meus grandes amigos são mórbidos. Compraram o jazigo na juventude. Os que pensam na morte cedo demoram a morrer. Preparam-se com tanta antecedência que perdem a hora.
A maldade preserva e o bem só traz rugas.
Posso garantir, todo santo estava acabado aos 40 anos.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Vou de táxi

Entro apressada no táxi, cumprimento o motorista, digo meu destino enquanto ele não diz uma palavra.
E meu olho pára no taxímetro em bandeira dois, às sete da noite.
"Bandeira dois?? Por quê?", perguntei, sem a menor hostilidade, só querendo saber mesmo.
"Porque a senhora se informe. Em dezembro é bandeira dois."
Engoli a malcriação do sujeito e fiquei quieta. Lembrei do meu horóscopo do dia, que dizia para aguardar que o momento certo chegaria com a certeza do que fazer.
Então ele falou de novo.
"A senhora não é daqui do Rio?"
"Não, mas já moro aqui tem quatro anos."
"Tem uma lei, não sei se é municipal ou nacional..."
Cortei: "MAS COM CERTEZA nacional não é."
"Bom. Então tem uma lei municipal que o prefeito assina todo ano que diz que os táxis usam bandeira 2 em dezembro."
Eis o momento certo. Respondi, seca: "É bom saber pra não usar mais táxi, não é?"
Ele calou-se para todo o sempre.

E a título de curiosidade: a tal "lei municipal" é uma resolução da Secretaria Municipal de Transportes.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Like a tattoo

Já sei, já puxaram minhas orelhas sobre meu peculiar romantismo fim-de-século (pra não usar o termo exato - pessimismo). Até porque não concordo com isso: só acho que é uma maneira menos poliana de ver a vida, mais pé no chão, com menos expectativas e tentando se frustrar menos.
Encontro alguns parceiros nesse Weltschmerz-way-of-life no meio do percurso. Caio F., apesar do desencontro temporal, me parece sempre como um irmão, uma alma gêmea, um perdido nessa selva de concreto e humanidade como eu. Lendo agora sua "biografia", escrita pela amiga Paula Dip, sinto-me mais próxima dele, que foi muito mais desapegado do que eu, muito mais capaz de se aproximar da miséria, e talvez muito mais humano. Mas não adianta: Weltschmerz uma vez, para sempre Weltschmerz. E parece que em breve I'll wear it like a tattoo.
Por enquanto, fico com este trecho duma carta do Caio. Tão singular e tão universal.
"Querida mãe, querido pai: não sei mais conviver com as pessoas. [...] Tenho vivido tão só durante tantos - quase 40 - anos. Devo estar acostumado... Estou me transformando aos poucos num ser humano meio viciado em solidão. E que só sabe escrever. Não sei mais falar, abraçar, dar beijos, dizer coisas aparentemente simples como 'eu gosto de você'. Gosto de mim. Acho que é o destino dos escritores. E tenho pensado que, mais do que qualquer outra coisa, eu sou um escritor. Uma pessoa que escreve sobre a vida - como quem olha de uma janela - mas não consegue vivê-la".