E eu nem gosto do David Coimbra, mas essa eu adorei. Saiu na ZH de hoje... ou ontem. Sorry. Meus dias estão meio desencontrados aqui em POA.
O feijão mexido es-pe-ta-cu-lar
Alguém algum dia descobriu um feijão mexido es-pe-ta-cu-lar num bar ali na Floresta. Delicioso feijão mexido, sim, mas o importante nem era isso. O importante é que era barato. Formávamos uma turma de duros. Um ganhava um salário mínimo, o outro um e meio, o terceiro dois. E deu. No máximo, dois.
Aquele feijão mexido era o seguinte: custava em dinheiro de hoje uns três reais. Três reais, cara! Então, quando tudo parecia perdido e a fome estrangulava nossos estomaguinhos, íamos passear na Floresta. O feijão mexido aterrissava fumegante na mesa, bem temperado com nacos de linguicinhas de porco da espessura de um minguinho, e aí a gente espargia um fio de azeite de oliva em cima e salpicava de molho de pimenta, ah...
Mas o melhor de tudo era o ovo. Preciso muito falar sobre aquele ovo. Um ovo assim:
O ovo perfeito.
Frito, evidentemente. Mas não qualquer ovo frito. O ovo frito perfeito.
Acho engraçado quando as pessoas se referem a alguém que não sabe cozinhar como alguém que não sabe sequer fritar um ovo. Fritar um ovo não é para amadores. Em primeiro lugar, há que se desenvolver a ciência de quebrar a casca do ovo sem lesionar a gema. Faz-se necessário um golpe seco, determinado, mas nunca violento. A casca deve se romper em definitivo, sem rachaduras, mas a membrana da gema, essa película tão meiga, não pode ser atingida. Tente fazer isso em casa, e verá como é difícil.
Antes, porém, de a casca ser fraturada, o óleo ou a manteiga devem estar fervendo na frigideira. Eis outra sutileza de ourives: o óleo tem de estar fervendo, sim, mas não queimando. Preste atenção: não pode queimar!
O passo seguinte é deitar languidamente o ovo na frigideira quente, com a gema para cima. Mais uma vez, o cozinheiro há de ser duro sem perder a ternura. O ovo despido da casca, fragilizado, exposto, ele e sua instável clara, ele e sua suscetível gema, esse ovo deve ser tratado como uma mulher que o amante já beijou na boca, já acariciou-lhe todo o corpo tenro, já ergueu-a nos braços e a conduziu, feito uma noiva, em direção ao leito do amor. Essa mulher e esse ovo esperam ser estendidos docemente em seu destino, ela sobre os lençóis macios, ele sobre o chão cálido da frigideira, e, se este gesto for feito com desenvoltura, ambos se abrirão para o seu dono, para o seu conquistador, para o seu cozinheiro, a mulher ainda arfante na expectativa do pecado, a gema ainda intacta à espera do calor da fritura.
Encerrado o trabalho?
Nada disso!
O tempo de fritura exige precisão de física nuclear. Porque a gema, necessita-se dela mole como a defesa do Inter, e a clara sólida, mas não seca. As bordas, por outro lado... ah, eis a arte!, as bordas hão de ficar crocantes e douradas, só que nunca, nunca!, torradas.
Por fim, que haja critério com a pitada de sal. Sal em demasia pode arruinar um ovo frito. Tenha comedimento, tenha parcimônia. Mas não ouse economizar, ou o ovo restará insosso como uma segunda-feira na rodoviária de Araranguá.
Aquele ovo frito que reinava sobre o cômoro de feijão mexido no restaurante da Floresta era um ovo perfeito, e mais do que isso: um ovo infalivelmente perfeito. Sempre saía como tinha de sair, com suas bordas douradas, sua clara sólida, sua gema mole, com o sal na medida exata. Como o cozinheiro sempre conseguia? Como é que ele jamais errava? Nem um único ovo frito que saía de sua cozinha falhava. Como isso? Um mistério.
Bem.
Um dia, conhecemos o cozinheiro. Por algum motivo, ele saiu da cozinha e o garçom o apontou para nós:
– É ele!
Não resistimos. Chamamos o homem. Era um sujeito de altura mediana, careca, meio gordinho, de passo lento e olhar enfarado. Aproximou-se relutante, vestido com avental branco e tênis Motoca. Perguntei, ansioso:
– Por favor, me diz: como é que se faz aquele ovo frito perfeito? Como???
Ele atirou um sorriso desanimado na toalha da mesa e deu uma resposta que foi uma resposta de um Adriano Imperador, de um Fred, de um Gordo Ronaldo, de um Nilmar, de um desses centroavantes que, como autênticos centroavantes, estão decidindo o campeonato com sua presença ou com sua ausência. Disse assim:
– Eu sei fazer.
E girou dentro daqueles tênis Motoca. E arrastou seu desalento de volta para o recôndito da cozinha.
segunda-feira, 16 de novembro de 2009
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