sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Refrão de bolero

E o problema é só esse, Ana, é que a gente sai do restaurante remoendo tudo que ouviu a tarde inteira, e o choro que engoliu entre águas e vinhos tintos, e tudo que a gente pensou sobre o que já passou, e a conclusão definitiva: ninguém dessas vinte pessoas na mesa tem a menor noção do que se passa nesse triste e único coração.
É só isso, Ana: a vida só se dá pra quem se deu. E quem se dá, mais hora menos hora se depara com a vida se dando, a vida nua, crua, dura, chata, definitiva, implacável. A vida só se dá pra quem toma porrada.
A vida só se dá, Ana, pra quem aguenta ouvir numa mesa sobre uma história, sobre mil anos de história, e sobre herdeiros dessa história onde a gente já deveria se encaixar. A vida só de dá pra quem engole vinho tinto ao invés de engolir as lágrimas salgadas por não ser reconhecido, e lembra que tudo que anda bem não chama a atenção, e leva a indiferença como elogio, e ainda assim espera caninamente o dia em que um "que bacana" há de aparecer.
Ana, a vida só se dá pra quem se dá entre acordes de piano, um quarto de cauda tocado depois de salmões cortados com maestria, depois de aspargos bem feitos, de sushis montados e picanhas a 81 reais. Eu achava que era isso, pelo menos. Achava que a vida era algo vivido, sentido. Como quem sente acordes de um quarto de cauda enquanto curte os últimos goles do tinto do dia.
Mas com eles vêm umas certezas sombrias, de que nada adianta enquanto não se tiver um anestésico forte, um analgésico forte, ou uma ignorância basilar que nos prenda na felicidade suprema de tomar um sorvete sob o sol de Copacabana como se fosse a última coisa a fazer na face da terra.
A vida só lembra que se dá pra quem percorre um aterro inteiro num táxi, engolindo lágrimas e chuva, enquanto tudo que vem à memória evanesce num piscar de olhos - enquanto tudo que há sobre o que se sente desaparece, como tudo que é tátil, palpável, súbtil. A vida só se dá pra quem não pensa, não enxerga, não sente. A vida se dá, mas não pra quem pensa enquanto matuta o que vai escrever ou como vai tentar explicar pra quem a quilômetros está. Quem pensa, já não reproduz. Quem ouve, já não sente, não sabe.
A vida só se dá pra quem se deu.
Mas essa ordinária nunca acha que a gente se dá o suficiente.

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